Queria voar como uma Borboleta
Quando era menina, chamavam-me Janchke.
Vivíamos na aldeia Biala Rawska juntamente com outras famílias judias e polacas. Passei aí os primeiros anos da minha infância.
Há muito que os judeus viviam na aldeia juntamente com famílias polacas.
Eu e meus pais habitávamos uma casa na rua principal. De frente, vivia outra família judia, os Neuman. A avó morava no centro da aldeia, junto ao mercado e as minhas tias num bairro só de judeus. Os meus melhores amigos eram os vizinhos polacos Marishka, Ianek e Basha. Gostava de brincar com eles às escondidas e ocultar-me entre os ramos das árvores do jardim que havia nas traseiras de nossa casa.
Ali corria atrás de gafanhotos e de toda a espécie de insectos que transportavam comida para os seus abrigos. Era tal a minha curiosidade que por vezes me esquecia que estava a meio de um jogo. Apenas os gritos de Marisha e de Ianek a procurarem-me me devolviam à realidade. No extremo da aldeia, corria um rio. No inverno, quando o rio congelava, patinávamos sobre o gelo e na primavera, após o degelo, lançávamos das margens barcos de papel até os perdermos de vista.
Toda a gente da aldeia gostava de mim. Era uma criança alegre e sorridente, tinha um cabelo encaracolado e as faces rosadas. Quem quer que se cruzasse comigo perguntava-me se estava bem e beliscava-me as bochechas.
Sabia cantar e recitar muitas poesias em polaco; e quando ia com os meus pais visitar familiares ou amigos, minha mãe pedia-me para recitar ou cantar diante de todos. Nem sempre acedia. Preferia, por vezes, continuar a brincar com as outras crianças.
Rebentou uma guerra terrível e perdeu-se essa infância maravilhosa.
No ano de 1939, tinha eu quatro anos, estalou a guerra. Soldados da Alemanha, o país vizinho, invadiram a Polónia. De uniforme cinzento entraram na aldeia. De seguida declararam o estado de sítio. A partir das 8 horas da noite, ninguém podia sair de casa. Quem fosse encontrado na rua, seria punido.
Via a minha mãe coser nos seus casacos, bem como nos do meu pai, estrelas de tecido amarelo.
- “Mãe, que estás a coser?”, perguntei.
- “É um distintivo que devemos trazer nas roupas, sempre que sairmos de casa”, respondeu-me.
- “Toda a gente?”, perguntei.
- “Apenas os judeus”, disse minha mãe.
- “Porquê?
- “Porque assim o ordenaram os soldados alemães.”
- “Mas porque razão?
- “Para se ficar a saber que somos judeus”, respondeu minha mãe, com impaciência.
- “Porque é que é importante saber quem é judeu?”, perguntei.
- “Não sei! Assim o ordenaram e assim procedemos!”, disse minha mãe, incomodada, continuando a coser o distintivo no casaco cinzento de meu pai.
Observei minha mãe. Os seus lábios estavam rígidos e cosia rápida e nervosamente.
- “Mãe, queres que te traga o meu casaco?”- perguntei.
- “Não! Para as crianças não é necessário!, respondeu assustada, continuando a coser os distintivos nos casacos. À noite, o casaco preto de minha mãe e o cinzento de meu pai estavam pendurados no bengaleiro, junto à porta de entrada. Em cada um deles, à frente e atrás, estava cosida uma estrela de tecido amarelo.
Depois do exército alemão ocupar a Polónia, os soldados alemães, em cada lugar a que chegavam, ordenavam que os judeus passassem a viver num único bairro da cidade ou da aldeia. Este bairro especial recebia o nome de gueto. Também na nossa aldeia se formou um gueto. A minha avó, as tias, os tios e a minha prima Henia viviam no gueto da aldeia. Aos judeus era proibido sair do gueto, fosse para ir ao mercado da aldeia, fosse para vender ou comprar. Só alguns judeus receberam autorização para trabalhar fora do gueto.
A minha mãe, o meu pai e eu recebemos uma autorização especial para viver fora do gueto.
Porque é que os alemães nos autorizaram a viver fora do gueto?
Porque a minha mãe era modista. Fazia vestidos e fatos para todas as senhoras da aldeia, cosia e arranjava os uniformes dos soldados alemães. Eles queriam que a minha mãe continuasse a costurar porque não havia melhor modista do que ela em toda a aldeia.
Minha mãe (Zisel Hershkowitz)
Minha mãe cosia quase todo o dia. Quando uma cliente vinha provar um vestido, eu sentava-me sobre um banquito baixo num recanto e observava. Era muito divertido ver a senhora a provar o vestido; ver como olhava para a sua silhueta no espelho, pela frente, por trás, à direita, à esquerda, e a minha mãe a arranjar, a melhorar…
Em troca das peças confeccionadas, a minha mãe recebia açúcar e comestíveis. Meu pai continuava a dedicar-se ao comércio.
Todas as manhãs ia ao gueto. Acompanhava-o frequentemente. Aí, em qualquer casa, o meu pai sentava-se em frente de uma pequena mesa e eu, a seu lado, numa cadeira. Os judeus do gueto, por sua vez, entravam na habitação. Um trazia um utensílio de prata antigo, outro uma jóia ou um tapete. Todos faziam o mesmo pedido - que o meu pai vendesse esses objectos fora do gueto.
O meu pai vendia-os no mercado da aldeia. Os judeus do gueto tinham de conformar-se com o pagamento muito mais baixo do que o custo real da mercadoria e com alguns géneros alimentícios.
Todos os dias ao meio dia a minha mãe interrompia o seu trabalho de costura e fazia uma sopa. Dentro de uma panela grande, cheia de água, punha verduras descascadas, um pouco de gordura e a sopa fervia sobre as grandes fornalhas da cozinha.
Eu também ajudava na sua preparação. Punha-me em cima de uma cadeira diante do fogo e mexia a sopa com uma grande colher de madeira, para que a gordura se derretesse e se misturasse com as verduras.
Passado um bocado, a mãe perguntava: “Está boa a sopa, Janchke?”, tirava com a colher um pouco de sopa, levava-a à boca, soprava para que esfriasse e provava-a. E só quando eu dizia que a sopa estava boa, é que a carregava sobre o carrinho e a transportava para o gueto. Ali repartia-se entre os judeus que passavam fome.
Na véspera do Yom Kipur (o Dia do Perdão), na noite de Kol Nidrei[1], fui com meu pai a sinagoga do “gueto”. Ele vestia roupa festiva com o distintivo amarelo sobre a lapela. Eu ia de vestido branco adornado com flores e sapatos de verniz branco. Meu pai levava uma bolsa de veludo, muito macia. Dentro da bolsa encontrava-se o “taled”[2].
Quando nos aproximámos, vimos crianças vestidas de branco, a brincar no pátio em frente a sinagoga.
Tudo se achava limpo e em ordem.
Meu pai separou-se de mim à porta da sinagoga e entrou. Fiquei junto à porta e olhei para dentro. Viam-se colunas altas pintadas de azul da cor do céu, que sustinham um tecto branco, amplo e alto.
Dezenas de velas ardiam nos candelabros suspensos em redor das colunas, iluminando o local.
A sinagoga estava cheio de luz.
Viam-se compridos bancos de madeira e centenas de pessoas, rezando, diante deles, envoltas nos seus mantos brancos.
O ambiente estava impregnado de santidade. Ouvia as orações e os cânticos.
Era um idioma que não conhecia – o hebreu. Todavia sabia que era o idioma, a língua do nosso povo.
Passado algum tempo, saí. As crianças pediram-me para brincarmos. Brincámos em silêncio, em respeito a sinagoga.
Umas semanas depois, deflagrou um grande incêndio. Vi o fogo.
Corri em direcção a minha mãe, “Mãe!” gritei “ o que está a arder?”
Minha mãe apertou-me ao peito e sussurrou:
“A sinagoga. Os soldados alemães estão a incendiar a sinagoga”.
“Porquê, mãe?”
Minha mãe abraçou-me e não disse nada.
Desde então me tem acompanhado sempre a imagem dos judeus envoltos nos seus mantos, rezando de pé, na sinagoga, no Yom Kipur, e a tal imagem vem associada a do incêndio da mesma sinagoga vazio com as chamas subindo ao céu.
Fiz seis anos.
Os alemães controlavam a nossa aldeia, Biala Rawska.
Chegou o primeiro dia de aulas.
Marisha, a minha amiga polaca, pediu-me para ir com ela à escola.
Encontrámo-nos de manhã e fomos na companhia de outras crianças nossas vizinhas. Chegámos à porta da escola.
Ali encontrava-se o porteiro. Reconheci-o, pois vivia perto de nossa casa. Saudava os alunos, dizendo: “bons dias” e “sorte nos estudos”.
Marisha entrou e eu atrás dela.
-“Bons dias”- disse ao porteiro.
-“Aonde vais?”, perguntou-me.
-“Para a escola, primeiro grau”, respondi orgulhosa enquanto entrava.
O homem colocou-se à minha frente, impedindo-me o passo.
-“Tu não podes”, disse num tom enérgico.
- “Mas eu tenho seis anos …”
-”És judia!” – disse “os judeus não têm direito a estudar. Nesta escola não há lugar para judeus”.
Olhei em redor. Marisha e as outras crianças pararam a ouvir.
Tocou a campainha.
Marisha e os companheiros correram para as salas.
Dei meia volta e saí.
Parei na rua, agarrando-me às grades da escola.
Vi Marisha afastar-se até entrar no edifício.
Não chorei! Sou judia e este não é o meu lugar.
Fiquei ali parada até o pátio ficar vazio.
O ano escolar começou sem mim.
Voltei para casa.
Minha mãe recebeu-me com um sorriso e perguntou: “Onde estiveste Janchke?”
-“Fui passear”, respondi.
-“Vem cá”, disse – “Hoje começam as aulas, esperam-te os livros.
Minha mãe entrou comigo no quarto. Estava lá também meu pai. Sobre a mesa havia uma pilha de livros e cadernos.
Meu pai sorriu, apertou-me as mãos e disse-me: “Felicidades. Hoje inicias o primeiro grau na “nossa escola” … “Boa sorte”. Minha mãe e meu pai foram os meus mestres na “nossa escola” e ensinaram-me a ler e a escrever.
Numa noite os soldados alemães ordenaram a todos os judeus que se dirigissem à escola da aldeia com alguma roupa e comida.
Nós também fomos avisados.
Minha mãe levou dois sacos com roupa e comida e juntámo-nos aos restantes judeus que vinham do “gueto”.
Esperámos nas salas.
De hora a hora, entrava um soldado alemão que lia nomes de uma lista e os judeus que ouviam os seus apelidos saíam e subiam para umas carroças puxadas a cavalos, estacionadas no pátio. Os condutores eram habitantes polacos da aldeia. Conhecíamo-los na sua maioria. Nos bons tempos, antes da guerra, costumavam transportar bens para o mercado.
Aguardávamos que lessem os nossos nomes.
Enquanto olhava para fora, através da janela, vi um dos vizinhos da avó aproximar-se de um condutor e perguntar: “Para onde?” “Para este”, foi a resposta.
O soldado alemão acabava de pronunciar o nome de minha avó, de minhas tias e de minha prima Henia.
Minha mãe e meu pai despediram-se delas a chorar. Também eu me despedi com abraços e beijos, mas não chorei.
Tinha ouvido ao condutor dizer “para este”… meu pai tinha-me contado que "Eretz Israel"[3] se localiza a este. Meu tio Yaakov, irmão de meu pai, tinha feito “aliá”[4] antes de estalar a guerra. Por isso pensei que levavam a avó e todos os demais para Eretz Israel.
Minha avó, minhas tias e Henia subiram para a carroça.
Logo que se sentaram já não as consegui ver. Via só as grandes rodas e as patas dos cavalos impacientes.
Amanheceu.
O soldado alemão leu os nomes constantes da última listagem.
Não fomos chamados.
Foi dada uma ordem e as carroças começaram a andar.
Quando a minha mãe percebeu que ficávamos, correu atrás da carroça onde ia a avó e atirou para dentro os sacos.
Continuou correndo atrás da carroça, até que seus olhos, chorosos, a perderam de vista.
Não nos expulsaram porque os alemães precisavam do trabalho de minha mãe como costureira. Melhor modista que ela não havia.
As carroças não se dirigiam a Eretz Israel, como pensava, mas sim para leste da Polónia.
Depois da guerra, soubemos que as carroças transportaram os judeus para a cidade Tomashov, sendo aí todos metidos em comboios que os conduziram a Treblinka.
Em Treblinka, os judeus da aldeia foram mortos pelos alemães, de entre eles, a minha avó, as minhas tias e a prima Henia.
Na aldeia, permaneceram connosco o sapateiro judeu, o ferreiro judeu e alguns outros judeus de cujo trabalho os alemães necessitavam.
As casas do “gueto” ficaram vazias.
Os comércios do “gueto” foram saqueados e o pouco que restou foi roubado.
De uma casa de fotografias, que foi assaltada, voaram fotos de crianças e adultos judeus que ali viveram e já não existem …
Minha mãe fez-me um vestido novo.
Já era noite quando o acabou de coser.
Pôs-me sobre a mesa e fez-me a prova do vestido.
Era um vestido de veludo azul com uma gola branca e grande, cheia de pregas.
Fiquei muito contente.
Dei voltas sobre a mesa, enquanto as pregas subiam e desciam.
Minha mãe gritou: “Cuidado não caias”.
Mas eu continuei voando como uma borboleta.
Meu pai entrou em casa.
Aproximou-se. Tirou-me da mesa. Nem sequer reparou no meu vestido novo.
“Temos de partir”, disse. “Encontrei-me com o pai da Marisha e informou-me de que esta noite vão expulsar os judeus que ainda ficaram na aldeia”.
Não havia tempo para perguntas.
Deixámos a casa e corremos em direcção ao bosque.
Quando chegámos, entrámos no curral de uma casa e escondemo-nos por baixo de uns feixes de palha.
Pela manhã apareceu a polaca dona da casa que nos trouxe de comer: pão caseiro, redondo com fiambre. Era amiga da nossa vizinha Moshalkova. Moshalkova conseguiu convencê-la a que nos escondesse no curral, a troco de um pagamento.
Durante o dia ficávamos sentados num poço que existia no curral.
Ouvia as vozes das galinhas que cacarejavam no pátio, do cavalo que se encontrava na parte dianteira da casa, e o murmúrio das árvores. Começava o inverno.
Soprava um vento frio que assobiava por entre os ramos das árvores. Observei os leitõezinhos que se acolhiam junto à barriga da mãe e disse para comigo: “Também eu tenho calor porque estou com meu pai e minha mãe”. Peguei num leitãozinho. Acariciei-o e brinquei com a sua pequenina cauda enrodilhada.
Não sei ao certo quantos dias já tínhamos passado no curral, quando uma manhã a dona da casa entrou assustada.
“Soldados alemães procuram judeus no bosque. Estou com receio. Que acontecerá se vos descobrirem aqui?”
- “Tranquilize-se”, disse meu pai – “esconder-nos-emos bem dentro do poço”.
- “Não basta”, disse a senhora com alguma intranquilidade “… “a menina”, ou seja, eu, “a menina assustar-se-á, gritará e os soldados descobrirão e será o meu fim. Vocês sabem qual é o castigo para quem ocultar judeus”.
De súbito, fez-se silêncio na cerca. Todos nos calámos, incluindo os porcos. Os ramos das árvores pararam de mover-se como se entendessem a gravidade da situação.
“Já sei”, disse a senhora, “pomos a menina dentro de um saco de rações. Sacha, meu filho, carregá-la-á pelo caminho como se fosse um saco cheio de rações e vocês esconder-se-ão no poço.
Com o meu vestido novo, que já parecia velho, entrei no saco. Era um enorme saco de tela rústica de cor castanha. O odor dentro do saco recordava o dos alimentos apodrecidos, existentes no curral.
Acocorei-me no interior do saco, enquanto repetia para mim mesma: “Sou uma ração!” “Sou uma ração!” “Proibido movimentar-se – as rações não se movem” “Não pronunciar palavras – as rações não falam”. Também devo respirar em silêncio, a fim de que ninguém me ouça. Se aparecerem os alemães – não é permitido gritar “As rações calam-se”.
O filho da senhora carregou comigo até que a mãe o informou de que os alemães deixaram o bosque e o perigo passara.
Os alemães não nos descobriram.
Voltei para junto de meus pais, para o poço do curral.
Gostava tanto de voar como uma borboleta.
Os soldados alemães continuavam a procurar judeus no bosque.
A polaca que nos escondeu no curral da cerca da sua casa receava que nos descobrissem e que por isso fosse punida. Quem escondesse judeus teria a pena de morte. A dona da propriedade comunicou aos meus pais que deveriam procurar outro lugar. Meu pai pediu-lhe que chamasse a nossa vizinha Moshalkova da aldeia. Quando Moshalkova soube que tínhamos de encontrar outro esconderijo, prometeu auxiliar-nos.
Passados alguns dias, ouvimos ruídos de passos junto à cerca. Ficámos assustados e escondemo-nos dentro do poço.
Meu pai cobriu-nos com palha.
Abriu-se a porta.
-“Zisl, Hersh”, escutámos a voz de Moshalkova.
Respirámos aliviados, Moshalkova sentou-se ao pé de nós e comunicou-nos que, em troca do dinheiro que meu pai lhe havia entregue, apenas conseguiu obter dois documentos de identidade polacos: de uma mãe e de sua filha. “Proponho que Zisl e Janchke se disfarcem de mãe e filha de uma família de camponeses polacos e se dirijam a casa de minha irmã que vive em Varsóvia”. Moshalkova dirigiu-se a minha mãe: “minha irmã e o marido aceitam-vos em sua casa”.
“Ficaremos juntos”, disse minha mãe.
“É perigoso”, disse Moshalkova, se encontrarem Hershl sem documentos prendê-lo-ão de imediato. Nem sequer os próprios polacos se atrevem a andar sem documentos, quanto mais os judeus.
-“Hershl”, dirigiu-se minha mãe a meu pai: “Entrega mais dinheiro a Moshalkova e talvez ela consiga também um documento polaco para ti”.
- “Zisl, não te iludas, mesmo com dinheiro, será difícil conseguir documentos”, disse Moshalkova.
- “Esperaremos até o conseguires”, disse minha mãe.
- “Permaneceremos juntos. Rogamos-te, por favor, que tentes obter um documento para Hershl, pediu minha mãe.
- “Prometo que tentarei”, retorquiu Moshalkova e minha mãe abraçou-a.
À noite, antes de nos deitarmos no poço existente no curral, disse-nos meu pai: “Zisl, Janchke, “quero que viajem para Varsóvia”.
- “E o que te sucederá a ti?”, perguntou minha mãe.
- “Quero ir para o bosque e unir-me aos resistentes”.
Olhei para meu pai, inquirindo-o com os olhos. Nunca ouvira tal palavra.
- “Dentro do bosque há grupos de combatentes, judeus e polacos que lutam contra os alemães, Janchke. Têm poucas armas mas a todo o momento atacam as unidades do exército alemão e sabotam as vias férreas por onde transitam os comboios que levam armamento. Quero juntar-me a um grupo assim. São os resistentes.”
- “Mas é perigoso”, quis dizer …
- ”Em todo o lado há perigo; até aqui neste curral fedorento. Contudo prometo que vou cuidar de mim”, disse-me meu pai com um grande sorriso e volveu os olhos para minha mãe.
- ”Herschl”, teimou minha mãe, “esperemos uns dias e talvez Moshalkova consiga um documento.”
Meu pai replicou: ”Não adianta, Zisl. Cada dia que passa, a situação torna-se mais perigosa. Também a dona da casa está impaciente e pode pôr-nos fora. Será preferível que fiques com mais dinheiro para pagar à família Skovronek que se dispôs a acolher-vos em Varsóvia. É o melhor que há a fazer”.
Na manhã seguinte, o meu pai pediu que chamassem Moshalkova para lhe comunicar o que tinham decidido.
Moshalkova trouxe-me roupas de uma menina do campo. Tirei o vestido novo, já muito sujo, e substituí-o por uma saia larga com franjas e uma blusa também franca e envolvi a cabeça com um enorme lenço.
Moshalkova entregou os documentos a minha mãe.
Estávamos prontas para a partida.
Meu pai abraçou-me, dizendo: “Janchke, virei buscar-vos quando terminar a guerra”.
Separámo-nos de meu pai com pranto e amargura.
O filho de Moshalkova conduziu-nos de carroça até à estação.
Viajámos de comboio até Varsóvia.
Não surgiram problemas com a revisão da documentação no comboio. E chegámos sem dificuldade a casa da família Skovronek.
Estava convencida também de que meu pai chegara à mata sem problemas.
Enganei-me.
Meu pai foi capturado e abatido.
Por esse motivo, não veio buscar-nos quando terminou a guerra, como tinha prometido.
Cheguei com minha mãe à cidade de Varsóvia.
Ninguém deu conta que éramos judias.
Dirigimo-nos à rua Zelazna, número 64: A família Skovronek habitava o 6.º andar. A senhora Skovronek era irmã de Moshalkova, nossa vizinha na aldeia.
A família Skovronek aceitou-nos em sua casa. Passámos a viver com o senhor Skovronek, que era electricista, com a senhora Skovronek, que vendia sabão no mercado e com suas filhas Janka e Basha, que frequentavam a escola.
Vivemos na companhia deles durante dois anos.
Durante esses anos, não andávamos livremente pela casa. Nunca íamos à janela. Gatinhávamos por baixo dela.
Durante esses anos, Janka e Basha não trouxeram amigas para casa. Era proibido dizer a alguém que nós vivíamos ali. Era segredo.
Minha mãe tinha a cargo a limpeza da casa. Fazia o sabão que a senhora Skovronek ia vender ao mercado, cozinhava e preparava a roupa da família. À noite, auxiliava as crianças nos trabalhos escolares. Eu sabia muitas das respostas, mas falava pouco para não as molestar ou aborrecer.
Pela manhã, depois de saírem, sentia-me como uma rainha. Regava as plantas da casa, lia os livros das crianças, gatinhava por baixo da janela, ouvia as vozes das crianças que brincavam no pátio e conversava com minha mãe. Sussurrando, para que ninguém ouvisse.
Sentava-me junto à porta e ouvia os passos das pessoas que subiam e desciam pelas escadas. Já conhecia os passos de cada uma. Sabia quando se preparavam para entrar e aguardava pelo movimento da fechadura. Ninguém tocava à campainha ou batia à porta. Se alguém batesse à porta ou tocasse a campainha, sentia-me frustrada pois não tinha ouvido os passos na escada. Então, esperava ansiosa que os passos se afastassem.
O apartamento da família Skovronek ficava próximo do “gueto” de Varsóvia. Os alemães tinham ordenado que todos os judeus de Varsóvia vivessem no gueto. Era o maior de todos os “guetos” judaicos. A senhora Skovronek contou a minha mãe que os judeus que conseguiram sair do “gueto” chegaram ao mercado e falavam de fome, de pessoas amontoadas, de doenças e de que partiam do gueto comboios de judeus. A senhora Skovronek também ouvira dizer no mercado que algo estaria para acontecer no gueto …
Uma noite, quando todos dormiam, ouvimos explosões que vinham do gueto, e vimos o céu cheio de labaredas.
Não me contive e aproximei-me da janela.
Junto da janela também estava minha mãe.
Não falámos. Chorámos apenas. Sabíamos que os poucos judeus do “gueto” lutavam com as suas últimas forças contra o exército alemão.
Os soldados alemães combatiam com metralhadoras e tanques contra os judeus que apenas dispunham de alguns revólveres. Os judeus não tinham qualquer possibilidade de vencer. Uma noite soou a sirene. Os alemães bombardeavam o gueto com aviões.
Toda a família desceu com os demais vizinhos para os refúgios. Minha mãe e eu ficámos no apartamento. Minha mãe encostou-se a mim e pediu-me que não olhasse.
Contudo, olhei.
Através da janela vi cair uma bomba e surpreendi-me. A bomba não era redonda como imaginava, tinha a forma de uma enorme garrafa. Permanecemos assim até que terminou o bombardeamento.
Após alguns dias, disse a senhora Skovronek que todo o gueto fora incendiado, não restando nele um único judeu.
Elogiou os judeus, referindo que no mercado se dizia que os judeus se atreveram a fazer o que os polacos não foram capazes: revoltar-se.
Quando nos refugiámos no apartamento da senhora Skovronek, ninguém devia saber que eu e minha mãe ali nos encontrávamos. Por isso quando havia visitas na casa, escondíamo-nos no roupeiro.
Uma vez apareceu uma visita de surpresa. Dado que não foi possível ir para o roupeiro introduzimo-nos na caixa do carvão. A senhora Skovronek sentou-se por cima da tampa, até que a visita saiu.
Por vezes, ficávamos no armário durante horas, sem que nos movêssemos ou pronunciássemos qualquer palavra.
Quando ali me encontrava, imaginava-me um pequeno duende no bosque, com um vestido azul e uma touca vermelha com lacinho, passeando por entre as flores, bebendo o seu orvalho e identificando cada uma pelo seu aroma.
Tínhamos planeado também o seguinte: Caso aparecessem alemães à procura de judeus e subissem ao quarto andar, eu e a minha mãe desceríamos do apartamento da senhora Skovrohek, que habitava o sexto piso, para o quinto piso e saltávamos para que não suspeitassem que vínhamos da casa da família Skovronek e não os castigassem por nos terem escondido.
Um dia apareceram os alemães no edifício. Subiram até ao quarto andar. Minha mãe agarrou-me a mão para descermos ao quinto andar, como tínhamos combinado. Janka Skovronek não deixou: Pegou numa escada e disse-nos para subirmos ao tecto do edifício. Sentámo-nos lá.
Após uma hora, Janka pediu-nos para descermos.
Quando voltámos ao apartamento, Janka disse que os alemães tinham subido até ao quinto andar e que logo desceram.
Minha mãe, Janka e eu dançámos entusiasticamente. Era uma dança de libertação, de alegria; uma dança de triunfo sobre as forças do mal.
Tinha dez anos quando a guerra terminou. Viajei de comboio com minha mãe até a nossa aldeia, Biala Rawska.
Pensávamos encontrar meu pai e porventura alguém mais da família que se tivesse salvo.
Um nosso antigo vizinho polaco entrou também no comboio. Esperava que se alegrasse em nos ver.
Lançou-nos um breve olhar e continuou avançando para o interior do vagão.
Chegámos à aldeia. Passámos em frente de nossa casa. Olhei pela janela. Tudo estava na mesma. Como se nunca tivéssemos ido embora. Vivia agora na casa uma família polaca. Já não era a nossa casa.
Fomos a casa da minha amiga Marisha. Permaneci ali enquanto a minha mãe foi até a casa da senhora que nos escondeu no curral para saber algo acerca de meu pai.
Marisha já não era minha amiga.
Muitas coisas se tinham passado e alterado desde a altura em que costumávamos brincar às escondidas no jardim traseiro da casa.
Minha mãe regressou e não disse uma palavra.
Não perguntei nada.
Estávamos sós, eu e minha mãe.
Perdemos meu pai, perdemos a minha avó, os tios, as tias e a minha prima Henia. De entre todos os judeus da aldeia, estávamos vivos eu, outra criança e trinta e cinco adultos.
No dia seguinte abandonámos a aldeia … para sempre.
Após termos deixado a aldeia, mudámo-nos para outra cidade. Não dissemos a ninguém que éramos judias.
Minha mãe trabalhava como modista e eu estudava na escola polaca da localidade. Ia à igreja cristã juntamente com os meus companheiros de classe e o padre ensinava a fé cristã. Uma vez fez-nos uma pergunta e só eu soube responder-lhe. Ouviu a minha resposta e disse: “Janchke, se não soubesse que eras cristã, diria que tens cabeça judia …”.
Regressei a casa e pedi a minha mãe que procurássemos outros judeus.
Viajámos até Lódz.
Era uma sexta-feira.
Caminhávamos pela rua e pela janela de uma das casas vimos um par de candelabros acesos.
”Hoje é véspera de Shabat”, disse minha mãe.
Minha mãe bateu à porta.
Quando a porta se abriu notei um cheiro intenso a recheio de peixe. Minha mãe abraçou chorando a judia, dona da casa.
Voltámos a viver entre judeus.
Minha mãe conheceu Yosef Kupershmit, judeu da cidade de Lódz, que perdeu a mulher e a filha na guerra. Casaram-se e Yosef passou a ser meu pai.
Um ano depois, nasceu meu irmão Abraham.
Meu pai Yosef disse que o meu nome judaico era Jana, como Jana e seus 7 filhos. Contou-me a história corajosa de Jana e seus filhos que foram mortos por ordem de Antíoco, só porque queriam continuar a viver como judeus.
Comuniquei a todos que o meu nome era Jana.
Sentia-me parte do povo de Israel e queria chegar à Terra de Israel.
Associei-me ao movimento juvenil ”Hexalutz”, em cujas actividades ouvia falar muito da Terra de Israel e esperava ir para lá.
Era para mim claro que a nossa família não iria ficar na Polónia.
Propuseram-nos ir viver para os Estados Unidos.
Eu disse que apenas iria para a Terra de Israel e para nenhum outro país.
Deixámos a Polónia em direcção a Israel.
Quando o navio Atzmaut (Independência) se aproximou do porto de Haifa, vi o monte Carmel e senti que havia chegado a casa.
Ainda no convés, disse para comigo:
“sou Jana, uma judia orgulhosa. Vivo na Terra de Israel, uma terra com futuro. “O povo de Israel está vivo – Am Israel jai!”.
Logo que chegámos a Israel, passámos a viver com os meus pais em Tel Aviv. Estudei na Escola de Enfermagem e trabalho presentemente como enfermeira no serviço de saúde pública de Tel Aviv. Casei-me com Itzjak Gofrit e dei à luz o meu filho Ofer.
Ofer é médico e vive em Jerusalém com Dafna, sua mulher e seus filhos Shani e Gal.
Minha mãe, Zisl, até à sua velhice, continuou a fazer fatos e vestidos em Tel Aviv.
Não esquecemos a família Skovrovek.
Foram reconhecidos como “Justos do Mundo”. Receberam um diploma e uma medalha; em sua memória, foi plantada uma árvore na “Avenida dos Just
A história de Jana Gofrit
Texto: Naomi Morgenstern
Desenhos: Avijai Cohen
Assessoria: Rami Bar Guiora, Carmit Saguí, Shulamit Imber, Abraham Milgram.
Tradução para o português, feita a partir da versão espanhola, por J. Santos Fernandes e Maria da Graça F. Rebelo Fernandes.
A publicação deste livro deve-se à generosidade de:
Sam Kardonski em memória de sua irmã Sarah Kardonski que pereceu no holocausto em 1940
Yad Vashem
Escola Internacional para o Ensino do Holocausto
Autoridade para a Memória do Holocausto e do Heroísmo Jerusalém – 1998os do Mundo” em Yad VaShem, em Jerusalém.
A minha história anda comigo e contei-vos parte dela.
Jana Gofrit
Dizengof 250, Tel Aviv 63116, Israel
[1] “Kol Nidrei”: oração solene que abre o serviço religioso do “Dia do Perdão”
[2] “Taled”: Manto branco utilizado pelos homens em alguns rituais religiosos.
[3] “Eretz Israel”: Terra de Israel.
[4] “Alia”: do verbo hebraico laalot (ascender), termo utilizado para designar a imigração de judeus para Israel.
[2] “Taled”: Manto branco utilizado pelos homens em alguns rituais religiosos.
[3] “Eretz Israel”: Terra de Israel.
[4] “Alia”: do verbo hebraico laalot (ascender), termo utilizado para designar a imigração de judeus para Israel.
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