segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Helga Weiss: a sucessora de Anne Frank

Helga Weiss e Anne Frank têm três pontos em comum. Ambas nasceram em 1929, ambas descreveram o regime nazi em diários e ambas passaram pelo maior campo de extermínio de judeus, Auschwitz. E um ponto que as difere: Helga sobreviveu ao Holocausto. Anne Frank morreu em Bergen-Belsen (Alemanha) aos 15 anos.
Helga conseguiu o feito de ser uma das 100 crianças que escapou com vida ao tenebroso campo de concentração, também considerado símbolo do Holocausto, a Sul da Polónia. Graças ao tio, que preservou o seu diário, escondendo-o numa parede, recupera agora as memórias. ‘O Diário de Helga’ foi lançado hoje, dia 19, pela editora Bertrand.
Neste mapa, pode seguir-se o percurso de Helga a partir de Praga, passando por Ostrava, até Auschwitz.
Os testemunhos são reproduzidos através dos cadernos originais. Helga começou por retratar os tempos de Praga, depois descreveu Terezín, onde entrou em 1941 (como se pode ver nesta planta, era uma fortaleza na República Checa convertida em campo de concentração, para onde foram 15 mil crianças) e a entrada em Auschwitz, em 1944.
O diário descreve as condições deploráveis que Helga e mais 45 mil judeus sofreram durante a invasão a Praga. O pai, funcionário num banco do Estado, deixou de trabalhar. As escolas encerraram e seguiram-se as deportações. 


Entre os relatos escritos, Helga também fez algumas ilustrações. Um talento que desenvolveu no pós guerra, quando regressou a Praga e estudou Arte. Em 2010, fez as ilustrações do livro do pai 'E Deus Viu o que Era Mau', que sempre a incentivou ao desenho. 
Com o pai, Otto, em Fevereiro de 1930 
Oito anos depois desta foto, Helga começou a redigir o diário, para descrever a ocupação em Praga. Quando a cidade da Checoslováquia foi invadida pelo regime nazi, Helga e mais 45 mil judeus passaram a viver em condições deploráveis, devido ao anti-semitismo.
O pai da autora ficou impedido de trabalhar. Em Setembro de 1939, as escolas fecharam e iniciaram-se as deportações. As crianças concentravam-se num quarto com uma mesa e cadeiras e aprendiam num quadro de lousa. No mês seguinte, decretou-se o encerramento das universidades. 
A família de Helga confinava-se ao apartamento, com escassa liberdade de movimentos. Aproximava-se o pânico do raid aéreo. 
Quando ouviu o soar o alarme, Helga correu para o abrigo com a família. “O meu pai andava de um lado para o outro no vestíbulo, impacientemente, e a minha mãe mal me conseguiu vestir as roupas da ginástica antes de corrermos para a cave. O porteiro abriu a velha arrecadação que deveria servir de abrigo. Ficámos apertados; ficamos apertados uns contra os outros.”

No início das aulas, em 1936.
A imagem não era elucidativa do ambiente pesado após os primeiros raids, em 1938. Mesmo assim, Helga continuava a frequentar a escola. Recorda que não estava muito atenta nas aulas, porque os alunos só pensavam no que ocorrera nessa noite. Trocavam impressões sobre o assunto e após o almoço regressaram ao abrigo. 
A tensão alastrou-se às salas de aula, sobretudo em Março de 1939. “Na escola, o ambiente era triste. As conversas alegres e o riso despreocupado das crianças tinham-se transformado em murmúrios assustados. Podíamos ver aglomerados de raparigas embrenhadas em conversas, nos corredores e nas salas de aula. Depois do toque da campainha, fomos para as nossas salas. Pouco se ensinou.”
Mais tarde, deu-se o inevitável: as crianças judias acabaram expulsas das escolas estatais. “Eu gosto da escola e a ideia de nunca mais me poder sentar numa carteira com os outros alunos faz-me vir lágrimas aos olhos. Mas tenho de o suportar; há outras coisas à minha espera, e muitas delas serão, sem dúvida, bem piores.”



Com os pais e a avó paterna, Sofie
Até Outubro de 1939 a família de Helga manteve-se unida. O mesmo não se passa com outras, dispersas em campos de concentração. 
“As detenções nunca param. A polícia alemã ‘Gestapo’, percorre Praga e prende quem muito bem entende, como eles dizem. Praga está cheia de homens da Gestapo, vestidos com uniformes e à civil”, recorda a autora.


Clandestinamente, os amigos arianos de Helga permitiam-lhe que ela continuasse a estudar e levaram-lhe cadernos escolares. Foi assim que Helga conseguiu ser aprovada num exame da escola judaica com nota máxima.
Correspondência com o tio, Josef Polák

Este familiar foi determinante para a publicação do diário. Foi ele que conseguiu preservá-lo, ao escondê-lo numa parede.

O ano de 1941 foi particularmente difícil. Helga e os pais foram deportados para um campo de concentração em Terezín, onde permaneceram três anos.

“Não voltaremos a ver Praga, outra vez. Nunca mais!”, lamenta Helga. 

À chegada, Helga foi conduzida para um edifício. Depois de subir as escadas e de percorrer um corredor, sentiu algum alívio. Tinha direito a um quarto. Era o 215. Adormeceu num colchão.
Bilhete da mãe para o pai
A troca de correspondência era feita em segredo. Nesta carta, a mãe de Helga escreve ao marido que tenta trazer a irmã e os parentes para a caserna.

Num outro bilhete, o pai de Helga confessou ao tio dela, Josef, o sofrimento de estar separado da família.

Capa do bloco de notas
No seu caderno de capa dura, Helga desenhava, mas também transcrevia poemas.

Poemas em bloco de notas
A autora apreciava prosa poética, como se pode ler na página esquerda. “Esquece as horas de sofrimento/mas nunca as lições que te ensinaram/Em memória, Francka.”
À direita, escreveu com mais humor: “Quando batatas e nabos comeres ao jantar/em Terezín hás de pensar”.
Numa outra página, coleccionou várias assinaturas de colegas de turma quando frequentavam a escola estatal.
Dormitório no campo de Terezín
A 13 de Dezembro de 1941, Helga registou que ela e a mãe tentavam dormir neste dormitório, confinadas a um espaço exíguo, com apenas 1,2 metros quadrados. “Somos 21 numa sala bastante pequena.”
Para saírem dali tinham de passar por cima de outros deportados. “Enfiamos os pés na cara de outras pessoas – é verdadeiramente horrível.”
O mais preocupante é que Helga não via o pai desde sexta-feira. “Mas ele enviou-nos uma carta de um homem que tem um passe. Por isso, uma das nossas grandes preocupações desapareceu: sabemos que ele ainda está na mesma cidade do que nós. Não podemos contactar com ele, nem mesmo por escrito – salvo se nos cruzarmos com alguém com passe e essa pessoa levar uma carta consigo.”


Brigada da limpeza

Depois de ter passado um Natal que qualifica de “miserável”, Helga descreveu o funcionamento da brigada da limpeza no campo, a 5 de Janeiro de 1943. “Permitia à pessoa visitar outras casernas. Numa altura em que ainda não era permitido à pessoa o livre-trânsito pela cidade, antes dos, antes de os habitantes naturais terem sido evacuados, esta era a única oportunidade para os homens e mulheres se encontrarem ou, pelo menos, para se verem ao longe.”

Em 1943, Helga mudou-se para a residência de um antigo comandante alemão. A casa localizava-se junto à praça da igreja. “Dividiram-nos em quartos por ano de nascimento. Por isso fiquei no vinte e quatro. Somos trinta e seis aqui; temos beliches com três pisos. Durante o dia estudamos juntas e só podemos sair como brigada.”

Vivia com uma rapariga da sua idade, Francka, apenas quatro dias mais nova. Mais uma coincidência: ambas nasceram na mesma maternidade. Falavam até de madrugada, o que impedia de chorarem. “Somos todas jovens raparigas, afinal, e devemos ser alegres; não nos são permitidas lamúrias.”

Apesar do aparente entusiasmo na escrita, Helga estava preocupada. A mãe adoeceu com uma infeção no ouvido médio e Helga só tinha permissão para visitá-la durante uma hora, ao fim do dia.
Ópera no sótão
Sim, havia muita disciplina e trabalho árduo. Mas também atividades lúdicas, por mais improvável que isso possa parecer. A explicação deve-se ao facto de haver uma grande comunidade de artistas e cientistas em Terezín. 
Helga descrevia a agitação cultural no campo, em Dezembro de 1943. “Realizavam-se recitais literários, concertos, peças e palestras nos dormitórios, nos sótãos e nos pátios. Estes eram uma fonte de esperança e de força, e as pessoas, incluindo as crianças, interessavam-se muito por elas.” 


A ilusão da Cruz Vermelha
As aparências contavam para impressionar o comité internacional da Cruz Vermelha, que visitou o campo de Terezín em 1944. “Tudo foi cuidadosamente limpo, iluminado e organizado como num palco. O comité foi enganado e acreditou que tudo se passava de acordo com a melhor das suas ordens”, recorda a autora.


O primeiro desenho: boneco de neve
Foi a primeira ilustração que fez em Terezín, em Dezembro de 1941. Dedicou-a ao pai, a quem fez chegar, secretamente, pela caserna masculina. O pai disse-lhe: “Desenha o que vês.”
No desenho seguinte reproduziu a “fila interminável” em direcção à cozinha, onde as mulheres aguardavam de pé pelas refeições, três vezes por dia. 
Também desenhou os lares para crianças, que tinham aulas a um canto. Mas ficou especialmente impressionada em 1942, ao encontrar uma cama num corredor com alguém a sofrer de tuberculose. 
Quando a sua melhor amiga Francka fez 14 anos, presenteou-a com um desenho onde procura fazer futurologia. “Imaginávamos como seria a vida dentro de catorze anos, quando fôssemos mães e passeássemos por Praga”. Nunca puderam concretizar. A amiga morreu poucos meses depois em Auschwitz. 


Canal no Pátio 
Os deportados não escapavam à chamada. À chegada ou partida do campo eram forçadas ao registo e a uma marcação. O mais doloroso era o compasso de espera. Durante horas, por vezes até dias, aguardavam que as chamassem, independentemente da temperatura. O retrato foi feito a 9 de Setembro de 1943.


Transporte de crianças polacas 
O retrato destas crianças, feito a de 19 de Agosto de 1943, é impressionante. “Chegaram num estado deplorável e ficaram de quarentena durante toda a sua estadia em Terezín. Não sei por que razão, mas elas deviam ter sido enviadas para a Suíça e acabaram em Auschwitz”, conta a autora. 
De ingénuas tinham pouco, já que quando foram conduzidas para os chuveiros, perceberam que se tratava de gás e gritaram. “Na altura, sabiam mais do que os outros prisioneiros de Terezín.”
In Revista Sábado, por Raquel Lito, 19/07/2013

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